“Um projeto de lei como o que está sendo proposto retrocede toda a conquista de direitos de inclusão, de dignidade e principalmente de cidadania, de fazer o bem para as pessoas”. Esta é a opinião da advogada Adriana Galvão, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) São Paulo desde 2010, a respeito do Projeto de Lei 6583/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre Estatuto da Família. Entre outros pontos polêmicos, o texto define entidade familiar como o núcleo formado, unicamente, pela união entre homem , mulher e seus filhos biológicos.
O Projeto de Lei também propõe a proibição da adoção de crianças por casais homossexuais e seu texto tem sido considerado um retrocesso que contraria decisões já adotadas pelo Poder Judiciário a respeito do conceito de família no Brasil, as quais tomam como princípio norteador o respeito às diferenças e vedação à discriminação em razão da etnia, religião ou orientação sexual das pessoas.
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Rede Mobilizadores – O Projeto de Lei que dispõe sobre Estatuto da Família define entidade familiar como o núcleo formado, unicamente, pela união entre homem e mulher e seus filhos biológicos. Ou seja, as famílias afetivas, os filhos adotivos, padrastos e madrastas, casais gays, são desconsiderados no Estatuto da Família. Não há neste PL um descumprimento de direitos humanos fundamentais?
R.: Entendo que este Projeto de Lei já nasce inconstitucional. Até uma inconstitucionalidade imaterial, porque sua essência vai de encontro à Constituição Federal. No poder Judiciário podemos verificar, reiteradamente, a aceitação aos novos núcleos familiares. O texto constitucional, no artigo 226, estabelece que a família deve ter proteção especial do Estado. Nela encontramos normatizações que permitem essas novas nomenclaturas familiares. Portanto, não pode haver diferença, por exemplo, entre filhos biológicos e filhos adotivos, ou entre filhos de relacionamentos que não fazem parte dos casamentos formais. As famílias formadas por laços afetivos são, muitas vezes, mais sólidas do que aquelas formadas por laços biológicos. Então, o PL seria de fato um contrassenso à Constituição e às novas composições familiares, onde as pessoas se unem pelo afeto, por ligações socioafetivas.
Tenho grande esperança de que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados se posicione frontalmente, logo no início da tramitação do projeto, contra este equívoco absurdo. Há uma coação à população ao dizer que “nós só aceitamos famílias formadas por pais, mães e filhos biológicos”, quando na verdade há uma nova constituição familiar na sociedade brasileira.
Depois de toda a evolução com relação aos direitos da família e na interpretação da Constituição em garantir os direitos fundamentais de um modo mais amplo e mais digno para as pessoas, não podemos retroceder à época onde os filhos fora do casamento tradicional não eram reconhecidos pelo Estado. Um projeto de lei como o que está sendo proposto retrocede toda a conquista de direitos de inclusão, de dignidade e principalmente de cidadania, de fazer o bem para as pessoas.
Rede Mobilizadores – O Poder Judiciário tem adotado decisões a respeito do conceito de família no Brasil que tomam como princípio norteador o respeito às diferenças e vedação à discriminação em razão da etnia, religião ou orientação sexual das pessoas. Há no Projeto de Lei um retrocesso?
R.: O Supremo Tribunal Federal, quando se posicionou e reconheceu os direitos para casais do mesmo sexo, equiparando-os aos casais com união estável, demonstrou que eles estão no mesmo patamar. Os casais heterossexuais têm os mesmos direitos dos casais homossexuais e vice-versa. Temos hoje decisões pacificadas: o Conselho Nacional de Justiça já editou resolução permitindo que os cartórios realizem casamentos entre pessoas do mesmo sexo, então essas pessoas preenchem todos os requisitos da lei.
Muito embora não esteja previsto taxativamente na Constituição a união entre pessoas do mesmo sexo, já tivemos interpretações, principalmente da Corte Constitucional, considerando e reconhecendo esses direitos, inclusive o direito de adotar conjuntamente. São inúmeros os casos, Brasil a fora, de casais adotando crianças no nome dos dois parceiros.
Imagine como ficaria a segurança jurídica dessas pessoas que outrora conseguiram uma adoção, de repente não poderem mais adotar. Os casais anteriores a esse projeto tinham direitos, casais a partir desse projeto não têm mais. Essa insegurança jurídica não deve ser levada em consideração pelo Poder Legislativo, que tem que dar segurança para as pessoas e não o inverso.
Rede Mobilizadores – O PL 6583/13 tem chances reais de ser aprovado pela Comissão Especial que o avalia? Pode passar pela Câmara e pelo Senado e ser sancionado pela Presidência da República? O que pode acontecer?
R.: O parlamentar não pode ter ingerência na conduta de uma pessoa em relação à sua sexualidade, à sua afetividade. O Estado não tem o direito de intervir em questões onde prevalece o princípio da liberdade. Se nós não conseguirmos sensibilizar a população brasileira de que há parlamentares que fazem pressão para continuar no poder – pressão esta definida por ideologias, dogmas ou questões partidárias – nós temos um Poder Judiciário capaz de verificar que este não é o rumo correto.
Me preocupa a composição atual do Congresso Nacional, com expressivo número de segmentos religiosos que não aceitam as novas constituições familiares. São parlamentares fundamentalistas, que não respeitam as liberdades constitucionais. A liberdade religiosa é um bem constitucional, mas não pode ser utilizada como forma de impor, à um país laico, determinados preceitos e dogmas que são contrários à interpretação de liberdade dada pela Constituição. Mas assim como nós temos bancadas fundamentalistas no Congresso Nacional, nós também temos bancadas de parlamentares que defendem essas novas constituições familiares, que estão tentando fazer um contraponto a essa questão.
Articulações políticas podem ser feitas para uma eventual aprovação de um projeto de lei desta natureza e eu não poderia descartar esta possibilidade e dizer que o PL 6583 não tem condições de passar – até tem. Mas também confio muito no Poder Judiciário e entendo que se um projeto dessa natureza realmente se transformar em lei, sem dúvida alguma, o Supremo Tribunal Federal iria declará-lo inconstitucional na sua totalidade, porque nós já temos precedentes de outras interpretações.
Rede Mobilizadores – No site da Câmara dos Deputados está no ar, a pouco mais de um ano, uma enquete perguntando se as pessoas concordam com a definição de família “como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família”. Tenho acompanhado a enquete desde o mês de março. Em 26/3, 54% dos votos eram favoráveis ao PL, em 6/4, esse percentual caiu para 51,5%, e em 9/4, quando chegou aos 6 milhões de votos, 50% de pessoas tinham voto favorável ao Estatuto da família. A população brasileira está mesmo dividida? O que estes resultados significam no seu ponto de vista?
R.: Em primeiro lugar, essas manifestações populares precisam ser verificadas. Qual é o quadro de pessoas que estão apoiando estas manifestações e que diretamente entram nesses sites específicos para votar? Eu tenho uma grande preocupação porque não sei se o resultado representa literalmente a vontade das pessoas. É muito fácil criar uma campanha dirigida por segmentos, hora para falar mal, hora para falar bem. Temos que ter bastante cautela para verificar se de fato esta é a vontade da população ou se são pessoas que estão sendo induzidas a fazer este tipo de pesquisa.
Por outro lado, um fato bastante interessante que você acabou de me relatar é que as pessoas que entendem como possível estes novos núcleos familiares também estão se posicionando. Veja que quando você começou a acompanhar estava em primeiro lugar a corrente mais tradicional, a favor do Estatuto da Família, e agora já temos uma outra visão.
Tudo isso nos faz pensar nas muitas campanhas que são feitas e das informações que são colocadas à disposição da mídia. E a imprensa tem um papel muito importante nesse aspecto, de informar de fato, de ser imparcial. Eu volto a dizer: é inconcebível o Estado querer impor com qual pessoa – com qual atributo de cabelo, de cor, de olho, se é magro, se é baixo – o outro vai se relacionar. A mesma coisa com relação ao sexo. O Estado não tem o direito de fazer isso porque existe uma autonomia de vontade. De se ter afeto de acordo com algo pessoal, íntimo, subjetivo e seu.
Entrevista concedida à Sílvia Sousa
Editada por Eliane Araújo