Criado pela Secretaria de Reordenamento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SRA/MDA) em 2003, o programa de bibliotecas rurais Arca das Letras já levou literatura para crianças, jovens e adultos, além de livros didáticos e técnicos para mais de um milhão de famílias de agricultores familiares, assentados da reforma agrária, pescadores, remanescentes de quilombos, indígenas, populações ribeirinhas e demais povos e comunidades tradicionais que vivem no meio rural. Até agora, foram 2,2 milhões de livros entregues em 2.338 municípios brasileiros, em acervos com cerca de 200 títulos cada.
Com o objetivo de contribuir para a educação e a transformação na vida rural das comunidades do campo, o empréstimo das obras e as ações de mediação e incentivo à leitura ficam a cargo dos agentes de leitura, voluntários que emprestam suas casas, ou se dirigem aos centros comunitários ou igrejas, onde são instaladas as bibliotecas, para dedicarem um pouco de seu tempo à ação cultural na comunidade. São 18.500 agentes de leitura espalhados pelo país.
A iniciativa conta com uma importante rede de parceiros que apoiam o programa com a doação de livros e material gráfico, com a construção dos móveis-bibliotecas, bem como em diversas atividades que envolvem a implantação do programa Arca das Letras nas comunidades. Entenda mais sobre as bibliotecas rurais nesta entrevista com a coordenadora-geral de Ação Cultural da SRA/MDA, Dione Ferreira.
Rede Mobilizadores – A senhora pode começar com um panorama do programa Arca das Letras?
R.: O Arca das Letras tem números expressivos. Nestes pouco mais de 10 anos de existência, são mais de 1 milhão de famílias atendidas no meio rural. São famílias formadas por agricultores rurais, comunidades quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, indígenas, que acessam os livros das bibliotecas rurais instaladas em 2.338 municípios de todo o país. Já formamos 18.500 pessoas como agentes de leitura, que doam um pouco de seu tempo livre para incentivar a leitura e promover o empréstimo dos mais de 2 milhões de livros entregues às comunidades desde o início do programa.
Rede Mobilizadores – Quantos e quais tipos de livros são ofertados em cada biblioteca rural?
R.: Cada acervo é formado inicialmente por cerca de 200 exemplares, divididos em 4 categorias e identificados com etiquetas coloridas para organizar a Arca e facilitar o trabalho do agente de leitura. Há dois tipos de literatura. A literatura infantil, que é identificada com a cor branca; a literatura para jovens e adultos, com livros nacionais e internacionais, identificada com a cor laranja; há também livros didáticos e de pesquisa – geografia, história, matemática, inglês – classificados com a cor verde; e livros técnicos e especializados, que falam sobre meio ambiente, saúde, agricultura. Vão de assistência técnica a receitas culinárias. Estes são catalogados com a cor azul.
Rede Mobilizadores – Como são adquiridos os livros do programa?
R.: Nós não temos dotação orçamentária para a compra de livros, são todos adquiridos por meio de doação. Por exemplo: recentemente, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro fez a doação de 200 mil títulos; a editora Record, também do Rio, nos entregou 136 mil livros; a Embrapa nos doou uma boa quantidade de livros de grande interesse para os agricultores familiares. Também realizamos campanhas para a arrecadação de livros em escolas, em igrejas, em editoras. Além das doações, espontâneas ou por nós captadas, recebemos livros doados por iniciativa da sociedade civil, são pessoas que nos procuram para ofertar acervos pessoais e temos muita satisfação em receber um livro que seja.
Rede Mobilizadores – O governo federal também faz doação de livros?
R.: Somente quando provocados. Antigamente recebíamos os livros do Ministério da Educação, por meio de parceria com o FNDE, quando havia livros excedentes. Mas como o número de escolas aumentou, não há mais o repasse porque não sobram livros. Ainda assim, no ano passado, o FNDE nos doou um livro muito bom, da coleção Girassol, para alunos do 1º ao 5º ano, voltado para famílias do campo.
Rede Mobilizadores – De que forma e quem pode participar do programa? Há alguma contrapartida?
R.: Nossa sugestão para uma pessoa da comunidade, instituição, secretaria municipal ou uma prefeitura interessada em receber o programa Arca das Letras, é que faça o levantamento das comunidades rurais do seu município e entre em contato conosco, escrevendo para arcadasletras@mda.gov.br.
Entregamos os livros e garantimos a capacitação de pelo menos 2 agentes de leitura por biblioteca. A contrapartida é a construção dos móveis onde os exemplares ficarão armazenados. As bibliotecas seguem um padrão e podem ser construídas em marcenarias da prefeitura ou particulares, com materiais de baixo custo e excelente resistência – placas de MDF são ótimas e dispensam a pintura do móvel, além de serem produzidas com madeira reciclada, sem agredir ao meio ambiente. Com as Arcas prontas, enviamos os acervos, materiais para a catalogação de novos livros – porque, ao longo do tempo, as bibliotecas geralmente são ampliadas pela própria comunidade – e a equipe técnica para instalar a biblioteca e capacitar os agentes de leitura, que também recebem capacitação para mediação e incentivo à leitura.
Os interessados no Arca das Letras podem buscar patrocínio para construção dos móveis com sindicatos, instituições, com o estado. Sempre dá certo. Claro que há casos em que as pessoas realmente não conseguem os recursos ou parcerias necessárias para construção dos móveis e comprovam a necessidade de implantação da biblioteca rural. Isso acontece, por exemplo, com povos e comunidades tradicionais como os quilombolas. Para estes, nós entramos com apoio e buscamos alternativas. Por exemplo, em Fortaleza, no Ceará, temos uma parceria com o sistema penitenciário por meio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e os presos fabricam os móveis para atender a demanda do estado.
Rede Mobilizadores – Há um número mínimo de bibliotecas para que o programa seja implantado?
R.: Não, não há um número mínimo de bibliotecas para que o Arca das Letras chegue às comunidades rurais. Nós acabamos de implantar uma biblioteca em uma comunidade extremamente pobre e vulnerável, a comunidade Floresta do Piauí, do Alto Médio do Canindé, no sudeste piauiense. Todo o processo aconteceu a partir da iniciativa de uma moradora muito articulada, que foi atrás da construção do móvel, da consulta à população e inscrição da comunidade, e tivemos muita satisfação em entregar os livros e realizar a capacitação neste local.
Quando há um número maior de comunidades a serem atendidas, de municípios próximos, nós os reunimos em um único momento para a entrega dos acervos e capacitação dos agentes de leitura. Mas não é necessário um número expressivo de comunidades para nossa atuação porque temos clareza das diferenças regionais, culturais e populacionais dos municípios brasileiros.
Rede Mobilizadores – Quem é o agente de leitura?
R.: O agente de leitura é qualquer morador da comunidade que tenha disponibilidade de tempo para se dedicar ao empréstimo dos livros e ao incentivo à leitura. Não há pagamento em dinheiro, mas o agente de leitura ganha ao servir sua comunidade, ao se tornar instrumento para que, por meio dos livros, sua comunidade cresça, evolua. Participar desta revolução, desencadeada por meio do acesso ao conhecimento, é muito recompensador para eles.
Rede Mobilizadores – A senhora pode citar exemplos de atividades para o incentivo à leitura e qual impacto gera nas comunidades?
R.: Nossa percepção é que as bibliotecas mais interessantes, mais atraentes, com o maior número de leitores, que recebem mais doação de livros, são justamente aquelas onde o agente de leitura realiza uma ou mais formas de mediação de leitura. Quando os agentes de leitura recebem a capacitação do MDA, além do preparo técnico para a catalogação dos livros, eles recebem um treinamento em mediação de leitura.
Saraus, festas culturais, arte culinária, música e dança, contação de histórias, leitura individual, são apenas alguns exemplos do que o mediador de leitura pode promover na comunidade. Quando o agente de leitura, além de emprestar os livros, realiza ações de mediação, o envolvimento da comunidade é muito maior e isto se reflete nos resultados.
Rede Mobilizadores – Depois de implantar o programa Arca das Letras na comunidade, o Ministério acompanha a evolução das bibliotecas?
R.: Nossa equipe é pequena, não temos pernas para acompanhar cada biblioteca implantada. Mas temos o papel de envolver o município – seja por meio da prefeitura, das secretarias de cultura, dos movimentos sociais, das comunidades – para que desenvolvam suas bibliotecas rurais.
O que fazemos é plantar a semente, dar o primeiro passo, e possibilitar que as comunidades se sintam responsáveis pelo crescimento de suas bibliotecas. Há excelentes exemplos pelo país de comunidades que mudaram sua história a partir do Arca das Letras. Chegamos com os 200 livros e depois temos o retorno de bibliotecas que tiveram seu espaço ampliado, que possuem acervos que ultrapassam os 5 mil títulos, ou de pessoas que chegaram à universidade a partir do que aprenderam na biblioteca rural.
Rede Mobilizadores – Como está atuação do Arca das Letras no Semiárido?
R.: Cinco mil bibliotecas do Arca das Letras foram implantadas em 1.005 municípios dos estados onde a região do Semiárido brasileiro está localizada: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Este é o panorama geral desses 9 estados. Se partirmos para o recorte do Semiárido brasileiro, falta atendermos apenas 56 municípios que ainda não possuem nem o Arca das Letras nem o programa de minibibliotecas da Embrapa, com a qual temos uma parceria para o atendimento da região. No momento, estamos buscando iniciativas que nos apoiem com a construção dos móveis para implantarmos as bibliotecas rurais nestes municípios, com os acervos do Arca das Letras e do projeto da Embrapa.
– Rede Mobilizadores – Qual é o grande desafio para levar a leitura para o meio rural?
R.: Sabemos que o índice de leitores no Brasil é muito baixo, seja no campo ou na cidade. No meio rural é ainda mais difícil, sobretudo pela dificuldade de acesso e falta de incentivo. Há pessoas que conhecem o primeiro livro só quando o Arca das Letras chega, e muitas destas pessoas não são alfabetizadas. Nossa tarefa não é nada fácil. Parece engraçado, mas há um desafio em propor ao outro, simplesmente, que leia um livro. Mas, claro, também sentimos grande satisfação quando recebemos uma ligação sobre um morador rural que leu todos os livros da biblioteca e quer saber onde conseguir mais. A ficha de empréstimo desta pessoa fica completamente tomada e nosso coração também, tomado de repleta alegria. Nossa maior satisfação é quando os livros que seguem para os mais diversos cantos rurais despertam o hábito da leitura, porque o saber traz o desenvolvimento, a aprendizagem, abre caminhos em estradas que só podem trazer benefícios àqueles que nela caminham.
Entrevista concedida à: Sílvia Sousa
Editada por: Eliane Araújo