O livro “A menina que não precisava de óculos” conta a história da Duda, uma criança transgênero em sua busca por reconhecimento, amor, carinho e respeito.
Lançado em 2014 pelo Instituto Elo, de Belo Horizonte, já ultrapassou 100 mil leituras na internet e em breve deve ter uma segunda edição impressa. A obra, que integra a coleção Cidadania para Crianças, é distribuída gratuitamente e está acessível na internet. Acesse aqui.
Em entrevista à Rede Mobilizadores, o autor, Alexandre Compart, explica o processo de criação da obra, o que o motivou, seus objetivos e suas percepções sobre o sofrimento enfrentado pelas crianças transgênero. Ele explica o objetivo central foi “proporcionar às crianças transgênero identificação. E aos pais e professores, especialmente, apresentar uma ferramenta para o diálogo, o aprendizado e o ensino”.
Compart é sociólogo, mestre em sociologia e diretor institucional do Instituto Elo.
Rede Mobilizadores – O que o motivou a escrever sobre transgeneridade no universo infantil?
R.: O Projeto “Cidadania para Crianças”, no qual o livro “A menina que não precisava de óculos” se insere, desde seu início, em 2010, tinha por objetivo publicar histórias infantis que trabalhassem temáticas ligadas à cidadania, como o respeito a diferenças, a tolerância, o diálogo, a solidariedade, a honestidade etc.
Depois de publicarmos quatro livros que trabalham estas temáticas: “Do jardim da casa amarela: A maior aventura do tatu-bolinha”, “O segredo do labirinto encantado”, “Será que é mesmo estranho… um porquinho gostar de banho?!!” e “Quero porque quero!!!”, sentimos a necessidade de alcançar e falar de crianças que estão menos ou de modo algum representadas na literatura infantil.
“São raríssimos os livros infantis publicados, tanto em língua portuguesa como em outros idiomas, que trazem crianças transgênero como personagens”
Para alcançar este objetivo, iniciamos uma grande pesquisa, cujos resultados nos deram a clareza de que tratar desta temática, e de outras como, por exemplo, a intersexualidade, era absolutamente necessário. São raríssimos os livros infantis publicados, tanto em língua portuguesa como em outros idiomas, que trazem crianças transgênero como personagens. Entre estes, nenhum era, até então, distribuído gratuitamente no Brasil. Para além de proporcionar identificação para as crianças transgênero, acredito que livros como este podem ajudar pais e filhos a dialogar e professores a tratar esta temática em sala de aula.
Rede Mobilizadores – Como foi o processo de criação da história? Você se baseou em casos reais?
R.: Tão importante como definir sobre o que falar é nos orientarmos sobre como falar. Antes de iniciarmos a escrita do livro, fizemos um grande trabalho de pesquisa. O texto e as ilustrações foram discutidos com profissionais de áreas como a psicologia e a pedagogia e procuramos fazer leituras orientadas para crianças. Estudamos também, com muito cuidado e carinho, a forma de divulgação das obras. Duda, a personagem central do livro, não teve como inspiração uma única criança. A história dela se aproxima da história de muitas crianças transgênero e foi inspirada por estas histórias.
Rede Mobilizadores – Quais os principais objetivos que pretendia atingir com o livro?
R.: A literatura é algo acessível a praticamente todas as crianças, e pode se alinhar a tecnologias contemporâneas, como a internet. Entendo que para além de informar, ocupar o tempo livre e divertir, a literatura é fundamentalmente um meio capaz de emocionar, e a emoção é um instrumento singular para o aprendizado. Nosso objetivo central foi proporcionar às crianças transgênero identificação. E aos pais e professores, especialmente, apresentar uma ferramenta para o diálogo, o aprendizado e o ensino.
“Entendo que para além de informar, ocupar o tempo livre e divertir, a literatura é fundamentalmente um meio capaz de emocionar, e a emoção é um instrumento singular para o aprendizado”.
Rede Mobilizadores – O livro foi lançado há dois anos. Qual sua avaliação sobre a repercussão e utilização da obra?
R.: A menina que não precisava de óculos tem nos surpreendido muito desde seu lançamento. O livro já ultrapassou 100.000 leituras na internet e estamos caminhando para uma segunda edição impressa. As versões para o inglês e o espanhol também têm recebido excelente acolhida. Especialmente, a adoção do livro por algumas escolas, públicas e privadas, tem nos dado enorme alegria.
Rede Mobilizadores – Em geral quais as principais dificuldades enfrentadas pelas crianças transgênero?
R.: Acredito que há duas dificuldades centrais enfrentadas pelas crianças transgênero: A angústia por não possuir as ferramentas necessárias para compreender-se e aceitar-se, o que seria consequência de um processo de socialização e construção identitária imperfeito; e o sofrimento causado pela incompreensão e pela rejeição das outras pessoas, especialmente, quando estas vêm dos pais e pessoas próximas. A partir destas dificuldades se formam outras, como a solidão, o medo, a violência verbal e física etc.
Infelizmente, a maioria das crianças transgênero enfrenta sozinha os enormes desafios do autoconhecimento, da auto aceitação, da construção de sua identidade e, também, todo o preconceito que o mundo pode oferecer e de fato oferece. “A menina que não precisava de óculos” procura contribuir um pouco para o enfrentamento destas dificuldades por estas crianças.
“Infelizmente, a maioria das crianças transgênero enfrenta sozinha os enormes desafios do autoconhecimento, da auto aceitação, da construção de sua identidade e, também, todo o preconceito que o mundo pode oferecer e de fato oferece.”
Rede Mobilizadores – Na sua avaliação, por que nossa sociedade tem tanta dificuldade de conviver com a diferença?
R.: É absolutamente surpreendente e triste que em uma sociedade tão diversa como a nossa, e, por isso, tão extraordinária e linda, a convivência com a diferença ainda seja um problema. E tão surpreendente como é a fixação, por pessoas e grupos, de quais diferenças podem ser aceitas e quais não podem.
“É absolutamente surpreendente e triste que em uma sociedade tão diversa como a nossa, e, por isso, tão extraordinária e linda, a convivência com a diferença ainda seja um problema”.
Acredito que essa dificuldade não é um defeito ou característica inerente ao ser humano, mas uma possibilidade que infelizmente se enraizou em diversas sociedades e culturas.
Como muitas outras possibilidades criadas pelo homem a rejeição do outro por suas diferenças pode, e neste caso deve, se transformar. E está, acredito, se transformando. Não somente em tolerância ou aceitação, mas em amor e identificação, exatamente, também, pelas diferenças.
Rede Mobilizadores – O que é e quais os objetivos do projeto Cidadania para Crianças do Instituto Elo?
R.: O projeto Cidadania para Crianças é um projeto sociocultural que publica livros infantis que trabalham temáticas ligadas à cidadania e falam de crianças pouco ou não representadas na literatura infantil.
Todos os livros do projeto são distribuídos gratuitamente e podem ser reimpressos por qualquer instituição. Os quatro primeiros livros publicados integraram a primeira coleção, que teve como temáticas centrais o respeito às diferenças, a colaboração e o diálogo. A primeira história publicada nesta coleção, “Do jardim da casa amarela: A maior aventura do Tatu-bolinha”, por exemplo, teve como temáticas centrais o respeito, o diálogo, a não violência e a mediação de conflitos; e a terceira, “Será que é mesmo estranho… Um porquinho gostar de banho?!”, falou sobre o respeito e a tolerância com as diferenças.
Os próximos livros a serem publicados serão “A princesa que não precisava ser salva” e “O descobridor de mundos”, sendo que este último livro tem como personagem central uma criança intersexual. As histórias da série trazem sempre elementos próximos da realidade de vida das crianças leitoras. Cada uma delas procura explorar suas temáticas sempre com o cuidado de não se limitar ao didático, mas de, principalmente, proporcionar prazer às crianças.
Entrevista e edição: Eliane Araujo
Revisão: Sílvia Sousa
Estou amando todos os temas apresentados! Estou achando pouco tempo e gostaria que revissem a questão da carga horária porque essa Oficina é pra ser realizada em pelo menos um mês!
Obrigada e boa noite!