Há alguns anos, a Fundação Heinrich Böll no Brasil vem acompanhando, junto com parceiros, os efeitos sociais, ambientais e políticos dos megaeventos. Mais recentemente, convidou pesquisadores, ativistas, jornalistas e representantes de ongs de defesa de direitos para discutirem as consequências e os problemas ligados à preparação da cidade do Rio de Janeiro para os Jogos 2016. O resultado foi o webdossiê Jogos Olímpicos 2016 no Rio de Janeiro, uma coletânea de artigos, vídeos, infográficos e estudos nos quais são discutidos temas como transparência e gastos, despoluição da Baía de Guanabara, mobilidade urbana, desigualdade de gênero no esporte, segurança pública, entre outros. Os estudos apontam que as intervenções feitas na cidade reforçam um modelo de cidade-negócio que acirra desigualdades e configura violações de direitos.
Nesta entrevista à Rede Mobilizadores, Marilene de Paula, historiadora, mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais e coordenadora de Programas e Projetos de direitos humanos e Brasil global da Fundação Heinrich Böll no Brasil fala sobre alguns pontos relacionados ao webdossiê.
Rede Mobilizadores – Os megaeventos estão inseridos em um projeto de cidade, que projeto é esse?
R.: No caso dos megaeventos, Copa do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos, representaram para as cidades anfitriãs mudanças urbanísticas importantes. No Rio de Janeiro houve milhares de pessoas removidas de forma forçada, grandes obras de infraestrutura que privilegiaram áreas da cidade para a especulação imobiliária.
“Muitos pesquisadores já apontam que um megaevento traz poucos benefícios concretos para a população da cidade, ou mesmo os ganhos econômicos são insignificantes para os países.”
Muitos pesquisadores já apontam que um megaevento traz poucos benefícios concretos para a população da cidade, ou mesmo os ganhos econômicos são insignificantes para os países. Então por que fazê-los se um megaevento aprofunda desigualdades e endivida o estado? Ele fortalece grupos políticos e econômicos ligados ao grande capital, e que nada têm relação em construir uma cidade mais inclusiva e democrática.
Rede Mobilizadores – Quais foram as principais violações constatadas durante as obras para os Jogos?
R.: De acordo com o Comitê Popular do Rio de Janeiro, 22 mil pessoas foram removidas em função das obras para preparação da cidade para os Jogos. O caso da Vila Autódromo* é emblemático.
“De acordo com o Comitê Popular do Rio de Janeiro, 22 mil pessoas foram removidas em função das obras para preparação da cidade para os Jogos.”
As promessas não cumpridas em relação à despoluição da Baía da Guanabara. As obras de mobilidade urbana, muitas delas deixadas de lado, ou mesmo com problemas graves logo após a sua inauguração, como é o caso do asfaltamento do BRT e o desabamento da ciclovia, no Rio de Janeiro. Em Cuiabá, um VLT, que custou R$ 1 bilhão, ainda não foi inaugurado. Em Belo Horizonte, o desabamento de um viaduto matou duas pessoas por graves problemas estruturais.
Houve também várias greves e mortes durante a construção dos estádios para a Copa, o que mostrava a falta de segurança para os trabalhadores e a não observância das leis trabalhistas.
Rede Mobilizadores – A alegação da Prefeitura carioca é de que a maior parte dos gastos olímpicos foi oriunda da iniciativa privada. Isso corresponde à realidade? Por quê?
R.: Não exatamente. Em estudo do Instituo Políticas Alternativas para o Conse Sul (PACS), que faz parte do webdossiê Jogos Olímpicos 2016 no Rio de Janeiro organizado pela Fundação Böll, os pesquisadores mostram que a conta não é bem essa. O custo de quase R$ 40 bilhões das Olimpíadas exclui as isenções fiscais, as indenizações aos moradores, o valor dos terrenos cedidos pela prefeitura à iniciativa privada, além de outras despesas menores.
Rede Mobilizadores – Quem são os maiores beneficiados pela realização dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro?
R.: Dois grupos certamente lucraram bastante com os jogos: um conjunto pequeno de empreiteiras, responsável pela obras de preparação da cidade, e o grupo político que domina hoje o Rio de Janeiro.
“A população lucra menos, talvez algum ganho esteja em mobilidade por ter sido melhorada com a inauguração do BRT e das linhas do Metrô.”
A população lucra menos, talvez algum ganho esteja em mobilidade por ter sido melhorada com a inauguração do BRT [transporte articulado que trafega em corredor exclusivo] e das linhas do Metrô. Mas de novo, a Barra da Tijuca [zona oeste do Rio de Janeiro] e os vários interesses dos grupos empresariais ligados ao mercado imobiliário foram os mais atendidos pelas obras.
Rede Mobilizadores – Os Jogos levaram a um processo de gentrificação** na cidade do Rio? Em que locais isso ocorre? E quais as principais consequências observadas?
R.: Na área do Porto, com a remoção de moradores, a gentrificação foi bastante forte. A aposta da municipalidade em transformar essa área em atrativa para empresas ainda não se confirmou completamente, mas esse é o plano.
“Na área do Porto, com a remoção de moradores, a gentrificação foi bastante forte.”
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* Um dos casos emblemáticos de resistência aos processos de remoções no Rio de Janeiro é a Vila Autódromo, uma comunidade na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, que historicamente lutou por sua permanência no local. A comunidade foi uma das únicas a conseguir construir uma proposta técnica alternativa a sua remoção, a partir da parceria com uma equipe multidisciplinar do ETTERN – UFRJ.
** O termo gentrificação foi cunhado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1963. Em um artigo no qual falava sobre as mudanças urbanas em Londres (Inglaterra), ela se referia ao “aburguesamento” do centro da cidade, usando o termo irônico “gentry”, que pode ser traduzido como “bem-nascido”, como consequência da ocupação de bairros operários pela classe média e alta londrina. O uso da expressão teve altos e baixos. Em meados dos anos 1980 foi usada em tom positivo, apontando melhoramentos em uma área abandonada ou degradada, e depois passou a ter uma conotação negativa, que permanece até hoje, justificada pela visão de que essa gentrificação promoveria um urbanismo excludente, expulsando as camadas mais pobres das zonas centrais, em uma espécie de “higienização social”. Saiba mais.
Entrevista e edição: Eliane Araujo
Revisão: Sílvia Sousa