O professor Pedrinho Guareschi conheceu o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), nos anos 1980, durante debates sobre a reforma agrária. Anos depois, utilizou os princípios elencados por Betinho em seus escritos sobre mídia e democracia no Brasil.
“O Betinho era um grande filósofo, porque são os filósofos que conseguem deixar as coisas claras. Certamente ele meditou muito e foi a partir de muitas experiências que ele levantou esses cinco princípios [da democracia]”, analisa.
Nessa entrevista, o professor Guareschi fala sobre sua visão de cada um dos princípios e também sobre o papel de cada cidadão e da mídia na construção da democracia.
Pedrinho Guareschi tem uma vasta carreira acadêmica e sempre esteve articulado com os movimentos sociais. Formado em Filosofia e Teologia, foi ordenado sacerdote em meados de 1964. Fez pós-graduação em Sociologia, mestrado, doutorado e pós-doutorado em Psicologia Social. É professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do CNPq. Colaborou, por vários anos, com a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, em Brasília, foi membro efetivo do Grupo “Ética na TV” e integrou o Grupo de Trabalho do Ministério da Justiça para discussão e implementação da regulamentação para a Classificação Indicativa dos filmes e programas de televisão. É autor de diversos livros.
Rede Mobilizadores – Qual a sua interpretação dos cinco princípios da democracia elencados por Betinho?
R.: O primeiro ponto, fundamental, é que não dá para pegar só um princípio sem os outros. Na verdade eles são uma rede que se entremeia e um tem a ver com o outro. É impossível falar de um sem falar do outro.
Primeiro temos a questão da igualdade e da diversidade. Isso é fundamental porque, lá no fundo, as duas grandes forças políticas, econômicas, sociais e filosóficas que se debatem hoje têm a ver com esses dois princípios: o liberalismo e o totalitarismo.
O liberalismo é um conceito que se define pela concepção de um ser humano indivíduo, alguém que é um e não tem nada a ver com os outros. O liberalismo é o que sustenta a grande força ocidental do neoliberalismo baseado numa suposta liberdade, que começou no século XV com Descartes.
Contrapondo-se a isso, surgiu o totalitarismo, o coletivismo, que diz não, não é o indivíduo o centro. O centro é a instituição, é o Estado, é o partido. Então, essas duas grandes forças estão continuamente em debate. A saída, e é o que a gente propõe, é o entremeio entre essas duas grandes forças.
“Devemos ser iguais naquilo que nos subordina” – sempre que um direito humano é ferido é preciso igualdade – “mas devemos ser diferentes naquilo que nos descaracteriza, naquilo que nos massifica”.
Por isso, a frase do Boaventura de Souza Santos é fundamental. “Devemos ser iguais naquilo que nos subordina” – sempre que um direito humano é ferido é preciso igualdade – “mas devemos ser diferentes naquilo que nos descaracteriza, naquilo que nos massifica”.
A diversidade resgata a subjetividade e resgata a singularidade de cada ser humano. Esses dois princípios devem ser tomados juntos. Não dá para apelar para a igualdade e esquecer a diversidade.
Rede Mobilizadores – E como os outros três princípios se relacionam com a igualdade e a diversidade?
R.: Os outros três princípios vêm mais ou menos desse ponto central. Betinho coloca a participação como terceiro princípio. Ele não colocou cidadania como princípio e sim a participação. Por quê? Porque a essência da cidadania é participar. Mas essa palavra participação é um pouco perigosa.
Para falar de participação, a gente tem de recorrer aos gregos, a pólis grega, porque os gregos eram considerados cidadãos não quando sentavam na praça, mas quando falavam do seu projeto, quando manifestavam sua opinião.
O [político e ativista social] Chico Whitaker distingue três níveis de participação. A participação na execução, que é o que todo mundo faz. O brasileiro é trabalhador. Depois a participação nos resultados, que é o quanto com que cada um fica. Mas o ponto central é a participação no planejamento. É quando se decide o que fazer (execução) e quem fica com quanto (resultados).
O segredo da participação, como o Betinho a entendia, é participação no planejamento. E aí está a cidadania.
Se você só fala em participação na execução e nos resultados está iludindo as pessoas. O segredo da participação, como o Betinho a entendia, é participação no planejamento. E aí está a cidadania.
O que há de mais profundo e fantástico no ser humano é a criatividade, a inovação, a arte, e isso está fundamentalmente no meio do povo. Tenho mais de 50 anos de experiência com grupos populares, em vilas, periferias, etc, e não lembro de ter estado numa reunião com 10, 20, 30, 40 pessoas, debatendo sobre os problemas deles, e ter chegado a uma solução mais ou menos aceitável antes que todos tivessem falado, principalmente as vovozinhas, as mulheres. Cada um tem um pensamento criativo, alternativo. Pra mim, aí está o segredo da democracia, da cidadania, da participação.
Do princípio da participação no planejamento vem toda a luta do orçamento participativo, que agora está se desdobrando em outros níveis de participação, não tão focado no dinheiro. Mas o dinheiro é o segredo. Se há participação no orçamento, é claro que nos outros níveis, como na educação, na saúde, na segurança, etc, vai ser mais fácil discutir. A participação é cidadania, e a cidadania é exercício.
Rede Mobilizadores – Como a ética está relacionada com a participação?
R.: Betinho não coloca ética como princípio, porque a ética é resultado dessa discussão….Há uma nova ética que provem do discurso. O que é ético? É aquilo que as pessoas discutem em igualdade de posição, está onde todos podem expressar sua opinião, manifestar seu pensamento.
Quando todos falam, chegamos a um relativo consenso, a um acordo temporário. E esse acordo é um patamar ético. Portanto, ética é esse acordo, conseguido através da opinião, da fala, da discussão.
É impossível entender ética em Betinho sem compreender o que para ele era participação. Participação é a cidadania.
É impossível entender ética em Betinho sem compreender o que para ele era participação. Participação é a cidadania.
Rede Mobilizadores – Como entendemos a solidariedade nesse contexto?
R.: Solidariedade é uma palavra relativamente nova, mas é muito importante. A gente só entende solidariedade quando compreende que o ser humano não é nem indivíduo – que não tem a ver com os outros – nem peça da máquina – onde quem manda é a máquina, que é o totalitarismo. É quando o percebemos como pessoa-relação, que está no meio entre a igualdade e a diversidade.
A gente só entende solidariedade quando compreende que o ser humano não é nem indivíduo – que não tem a ver com os outros – nem peça da máquina – onde quem manda é a máquina, que é o totalitarismo. É quando o percebemos como pessoa-relação
E o que é a relação? Relação é aquilo pelo qual uma coisa não pode ser sem a outra. Mas dizer para um ser humano que ele deve ser relação, que ele só pode ser se tem os outros, não é tão simples.
Um animal não é humano porque ele não consegue estabelecer relações conscientes. Ele tem relações de agregação, mas não tem consciência dessas relações. O ser humano é capaz de estabelecer essas relações e aí está a diferença do ser humano de qualquer outro ser vivo. E qual a palavra para explicar esse conjunto de relações? É a solidariedade.
Quando Durkheim criou a Sociologia, ele se espantou com a questão de as pessoas viverem juntas. Mas por que vivem juntas? Vivem juntas porque há nas pessoas essa tendência, esse realismo de perceber que um precisa do outro. Ele distinguiu entre a solidariedade mecânica (numa máquina, uma peça não funciona sem a outra) da solidariedade orgânica, mas ele não foi à frente. É preciso ir à frente de Durkheim, porque se ficamos só na solidariedade orgânica, chegamos ao totalitarismo.
A gente sempre precisa do outro. Mas é muito perigoso na solidariedade cairmos no totalitarismo e dizermos que o importante é a máquina, é a instituição, é a comunidade. E essa é outra palavra perigosa, pois não podemos falar em comunidade sem lembrar que essa comunidade é feita de relações, que são as pessoas.
Não posso, a partir da comunidade, fazer com que a pessoa se torne uma peça obrigatória. Ela continua sendo livre.
Rede Mobilizadores – E o princípio da liberdade, o que implica?
R.: A liberdade é muito difícil porque também é um pouco misteriosa. Não entendo o mistério como alguma coisa que a gente não entende, mas como algo que a gente não entende totalmente.
Pra mim, o melhor enfoque para discutir esse princípio, que Betinho também usava, está em Paulo Freire, que resgata a liberdade através da consciência.
Como educador, Freire se defronta com o problema de como chegar numa pessoa que está manipulada, ingênua, sem consciência e fazer com que ela seja agente. Como resgatar nela a dignidade do ser humano?
Ele diz que é preciso começar a fazer com que essa pessoa pense, que ela tome consciência de que é alguém. Que ela se defronte com a questão: quem sou eu?
O quem sou eu é a pergunta filosófica que atravessa a humanidade, desde que a humanidade é humanidade. Paulo Freire diz que a gente consegue resgatar o ser humano na medida em que fazemos a pergunta. Por isso, a essência do processo pedagógico de Freire é fazer a pergunta. Quando você faz a pergunta, o que acontece com a pessoa? Ela começa a pensar e, à medida que ela vai achando respostas, vai crescendo em consciência.
Então, a consciência é o quanto de resposta eu consigo à pergunta: por que eu sou o que sou? Por que as coisas são assim? E quanto mais consciência a gente adquire, mas livre vai ficando. Ninguém é livre sem ter consciência.
A liberdade é um processo infinito, como dizia Betinho, de busca de razões do porquê eu sou o que sou. Ou seja, à medida em que cresço em consciência, vou me libertando.
A liberdade é um processo infinito, como dizia Betinho, de busca de razões do porquê eu sou o que sou. Ou seja, à medida em que cresço em consciência, vou me libertando.
Quando uma comunidade se reúne e começa a descobrir as razões de ser o que é, de ter os problemas que tem, ela vai se libertando e crescendo, e se torna responsável. Uma responsabilidade que vem da consciência. Só é responsável quem é livre, e só é livre quem tem consciência.
Esse é o tripé da dignidade humana: a consciência que leva à liberdade e a liberdade que me torna responsável é a essência da dignidade humana. A dignidade não é algo que cai do céu. A dignidade é algo que é construído. Nós vamos nos tornando dignos.
A gente também vai conseguindo dignidade na medida em que busca essa dignidade. E como a gente busca? Na ação, na organização, na solidariedade, tomando consciência, refletindo. Assim, a gente vai se libertando, e, com isso, a gente vai se tornando cada vez mais digno.
Rede Mobilizadores – Betinho defendia o papel da cada cidadão na construção da sociedade que desejamos. Na sua avaliação o que é fundamental para uma participação cidadã efetiva?
R.: Paulo Freire dizia, que ao trabalhar com gente, temos de ter cuidado de evitar três tentações: a tentação do autoritarismo – eu sei, você não sabe; do basismo – a base sabe, o povo sabe, os outros não sabem; e do espontaneismo – tem que deixar, não pode mexer, quando as relações estivem maduras vai explodir a revolução.
A saída, segundo Freire, é fazer a pergunta que liberta. Essa é uma sugestão de ação. Porque no momento em que fazemos a pergunta, o povo começa a pensar, e, ao pensar, cria consciência, e, criando consciência, se empodera.
Na língua inglesa, consciência e ação ou conscientização é chamada de empowerment, que nós traduzimos por empoderamento. À medida que a gente toma consciência, a gente vai se empoderando, vai se libertando. E aí a gente consegue inventar maneiras alternativas.
Temos de provocar a participação. Mas ninguém vai participar se não percebe que aquilo tem algum sentido para a vida dele.
Temos de provocar a participação. Mas ninguém vai participar se não percebe que aquilo tem algum sentido para a vida dele.
Rede Mobilizadores – Qual o papel da mídia para construção de uma sociedade verdadeiramente democrática?
R.: Pra mim a mídia é fundamental. A questão da mídia está ligada à questão da comunicação. No capítulo 4 do meu livro “O Direito Humano à Comunicação – Pela Democratização da Mídia”, tento refundar o conceito de comunicação, a partir do segundo grande insight de Paulo Freire.
O primeiro grande insight dele é que a essência do processo pedagógico é fazer a pergunta [que liberta]. O segundo é o jeito, a prática, a pedagogia, a didática, a maneira como eu faço [a pergunta]. Não dá para separar os dois, na verdade. Para ele, o conteúdo mais importante de uma comunicação é o jeito como você a faz.
O meio de comunicação eletrônico deveria estabelecer o debate nacional, mas aqui no Brasil aqueles que detêm os meios de comunicação dizem o que querem, quando querem e como querem. Isso é um abuso, é um crime.
A questão da mídia é que ela só é verdadeiramente democrática quando todos dizem a palavra, expressam sua opinião, manifestam seu pensamento.
A questão da mídia é que ela só é verdadeiramente democrática quando todos dizem a palavra, expressam sua opinião, manifestam seu pensamento.
Então qual é o papel dos comunicadores? Não é dar respostas, mas, pedagogicamente, fazer a pergunta para que o povo pense. Esse é o papel de um âncora, de um comentarista, de um comunicador.
Rede Mobilizadores – O que precisamos para alcançarmos uma mídia democrática, participativa e ética em nosso país?
R.: Precisamos de leitura crítica da mídia. Temos de fazer o povo pensar. Pegar dois textos de jornais diferentes, comparar e perguntar: por que um diz isso e outro diz aquilo? Então vamos perceber quais são os valores presentes, e aí chegaremos às ideologias, aos interesses, que no fundo, acabam sempre no cifrão. O filósofo francês Erik Saban fala em tecnocapitalismo, tecnoliberalimo e mostra que no fundo tudo é uma tentativa de transforma o ser humano em algo que pode ser vendido.
Entrevista e edição: Eliane Araujo
Revisão: Sílvia Sousa