Os rótulos dos alimentos em teoria fornecem informações sobre o produto, mas na prática a publicidade aparece em destaque, deixando as informações mais relevantes para os consumidores escondidas nos cantos. Além disso, esses dados são pouco claros.
Nesta entrevista, a jornalista Francine Lima afirma as informações obrigatórias deveriam aparecer em primeiro plano nos rótulos, com destaque e de forma que o consumidor conseguisse entender o que está consumindo.
Criadora do canal Do campo à mesa, uma mídia digital independente com conteúdo informativo sobre alimentação saudável e sustentável, Francine tem estudado o tema da rotulagem de alimentos. Em agosto de 2014 ela concluiu mestrado pelo Programa de Nutrição em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Comunicação na promoção da alimentação saudável via rótulos: uma análise dos discursos”.
Francine afirma que “se os rótulos – tais como pensados pelos órgãos regulatórios, não pelos publicitários das marcas – fossem vendidos em bancas de revistas, ninguém compraria, porque são chatos demais” e defende rótulos criativos, atraentes e alinhados à política de saúde pública.
Rede Mobilizadores – Você é jornalista. O que a levou a se interessar pelo tema da nutrição a ponto de criar o blog Do campo à mesa?
R.: A observação de que os indicadores de saúde relevados por pesquisas como o Vigitel1, o sobrepeso crescente visível nas ruas, a oferta crescente de produtos de má qualidade nutricional no mercado e a confusão de informação sobre nutrição na mídia e nos rótulos eram partes de um mesmo problema. Por meio do jornalismo, é possível escancarar a existência do problema e apontar caminhos para a solução. Daí a imagem do olhar atento, da escuta aguçada e do megafone que uso como identidade visual.
Rede Mobilizadores – O que é uma alimentação saudável e sustentável?
R.: Um ciclo virtuoso entre o que se produz e o que é consumido. Saudável é o que faz bem à saúde, sendo saúde um estado de bem-estar pleno que vai além da inexistência de doenças, na definição da Organização Mundial de Saúde (OMS). Nessa saúde se inclui, portanto, a correspondência entre o alimento disponível e a cultura, a proteção contra efeitos tóxicos, a satisfação ao comer, o prazer de se perceber capaz de acessar e preparar a própria comida.
Sustentável é o que o planeta consegue manter no longo prazo, com seus recursos. A população humana está crescendo, mas a superfície da Terra não cresce. Temos de produzir alimento para todas as espécies com este único planeta. Temos poucas corporações dominando o sistema econômico da produção e distribuição de comida, com mais produção de riqueza monetária do que distribuição de alimento, com esgotamento de recursos naturais (como a água potável) e deterioração de ecossistemas como consequência. Um sistema sustentável é aquele em que a produção não esgota os recursos, mas contribui para sua renovação. Na agroecologia é assim.
Rede Mobilizadores – Podemos dizer que a população brasileira tem ingerido comida de verdade? Por quê?
R.: Sim. Felizmente o brasileiro ainda preserva fortemente sua cultura alimentar e se alimenta majoritariamente de comida. Temos pratos de comida de verdade em padarias, lanchonetes e os bem-vindos self-services, além do costume de cozinhar arroz e feijão em casa. Mas também temos uma entrada crescente e preocupante de produtos ultraprocessados2 na dieta, substituindo em parte as refeições tradicionais. O papel da promoção da alimentação saudável é conter essa substituição e valorizar a comida brasileira.
Rede Mobilizadores – Como os rótulos podem contribuir para promoção da alimentação saudável?
R.: Encaro os rótulos como veículos de comunicação de massa. Tal como os jornais, eles mesclam informação com publicidade, mas com outra hierarquia. Nos rótulos, a publicidade aparece em primeiro plano, enquanto a informação mais relevante fica escondida nos cantos.
Obviamente, até por ser jornalista, acredito que a informação deva subir nessa hierarquia e aparecer nos rótulos em primeiro plano, com “manchetes” garrafais e notas bem escritas, que todos possam entender, infográficos que resumam as informações mais importantes, imagens que testemunhem os fatos, diagramação criativa que destaque o que deve ser destacado.
Se um jornal pode avisar à sociedade quais os problemas do país e mastigar dicas para o cidadão solucioná-los ou driblá-los, os rótulos também podem. Desde que eles sejam planejados e produzidos como meios de comunicação destinados ao esclarecimento, não à confusão.
Rede Mobilizadores – Em sua dissertação de mestrado você afirma que as normas para rotulagem de alimentos em vigor no Brasil favorecem o nutricionismo e deixam de lado aspectos importantes da saúde e da sustentabilidade. O que quer dizer com isso? Que aspectos importantes ficam relegados?
R.: O nutricionismo é considerado uma ideologia nascida dentro da ciência da nutrição. Ao serem “descobertos” os nutrientes e sua função no funcionamento do organismo, entendeu-se erroneamente que a saúde dependia deles, independentemente de sua fonte. Ou seja, ficou parecendo que basta comer os nutrientes certos e evitar os errados para ser saudável. E essa hipótese virou dogma, absorvido e defendido em massa pela mídia e pelo marketing nutricional.
Mas o fato é que a ciência dos alimentos ainda não conhece inteiramente a composição dos alimentos, nem como os alimentos interagem com nosso corpo. O que sabemos é que os alimentos vindos da natureza e da agricultura e as preparações culinárias tradicionais feitas à base desses alimentos têm funcionado para o bem da nossa sobrevivência e saúde há milênios. Não podemos acreditar que apenas com combinações laboratoriais/ industriais de nutrientes poderemos substituir a alimentação natural que já foi testada e aprovada por tanto tempo.
Pois bem. Os rótulos descrevem os produtos alimentícios com base em seus nutrientes, ignorando a forma como os componentes desses produtos foram combinados. Se não foi a terra que fez a combinação, e sim uma indústria, não podemos assumir que o balanço de nutrientes diz tudo sobre ele, nem que essa combinação é segura ou suficientemente nutritiva. O rótulo precisa dizer “a real” sobre esse produto, não contar meias verdades.
O modo como os ingredientes que compõem os produtos foram extraídos do alimento original, processados, armazenados, processados novamente, tratados etc. etc. etc. não está descrito nos rótulos. Também não se informa se eles contêm resíduos de agrotóxicos, se houve trabalho escravo ou infantil envolvido, se houve emissão excessiva de carbono na cadeia, se o produtor foi remunerado de forma justa ou não… São inúmeros os fatores não informados nos rótulos brasileiros, embora muitos deles já estejam contemplados em sistemas de rastreamento e certificação adotados em outros países. Temos muito a evoluir na informação ao consumidor.
Rede Mobilizadores – A partir dos resultados da sua pesquisa, qual a melhor forma e local para exibição da tabela nutricional e da lista de ingredientes dos alimentos industrializados? Por quê?
R.: Eu acho que a questão é outra. Eu não gosto da tabela nutricional e acho que ela deveria ser substituída por uma forma bem mais amigável de comunicação. Você raramente vê tabelas em revistas mais modernas, certo? As revistas têm uma equipe de designers e infografistas para pensar a melhor forma de comunicar uma ideia. Eu acho que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deveria ter também. Eu não tenho um design em mente, pois como repórter eu cuido do texto. Mas, se me chamarem pra “brifar”3 o infografista, eu vou na hora.
Rede Mobilizadores – Na sua avaliação, quais as mudanças mais importantes a serem feitas na rotulagem de alimentos no Brasil?
R.: Em primeiro lugar, o rótulo precisa abandonar o nutricionismo e tratar os produtos alimentícios como composições diferentes dos alimentos in natura e minimamente processados. As perdas que os alimentos sofrem no processamento, os impactos socioambientais, o motivo da maior durabilidade (incluindo os positivos), todas as diferenças devem ser levadas em conta e transformadas em informação útil para a decisão do consumidor, pra que este possa pesar com clareza os prós e os contras.
Em segundo lugar, é preciso caprichar na linguagem. A informação obrigatória está hoje “jogada” no rótulo, como se fosse obrigação do sistema de ensino dar um jeito de o consumidor entender o que está escrito lá, inclusive aqueles percentuais que nos obrigam a levar lupa e calculadora para o supermercado.
Se os rótulos – tais como pensados pelos órgãos regulatórios, não pelos publicitários das marcas – fossem vendidos em bancas de revistas, ninguém compraria, porque são chatos demais. Acho que os rótulos estão para a mídia impressa assim como o Diário Oficial está para a revista Superinteressante. #prontofalei.
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1 – Vigitel – Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico – levantamento realizado anualmente pelo Ministério da Saúde. Os dados de 2013 indicam que 50,8% dos brasileiros estão acima do peso ideal e que, destes, 17,5% são obesos.
2 – Alimento ultraprocessado – são alimentos prontos ou semiprontos para o consumo. São altamente calóricos e ricos em sódio, açúcar, gordura e conservantes, têm baixa quantidade de fibras e nutrientes.
3 – Brifar – significa passar o briefing (que em inglês quer dizer resumo). Muito utilizada principalmente na publicidade, o briefing é a transmissão de informações suscintas e objetivas sobre uma tarefa a ser executada.
4 – Infografista – profissional responsável por fazer infográficos, ilustrações explicativas sobre um tema ou assunto.
Entrevista concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa
Gostei muito da a abordagem do assunto, eu mesma tenho muita dificuldade para entender o que vem escrito nos rótulos principalmente porque tenho crianças e gostaria de saber o que estamos consumindo.
É muito importante buscar informações nos rótulos dos alimentos e se as informações, fossem clara facilitaria a leitura para os leigos.
Quero parabenizar a jornalista Francine Lima pela importante entrevista, por ser esclarecedora acerca da questão da rotulagens em alimentos que não são vísiveis para os consumidores. Ainda é relevante expor que ela chama atenção de que a população brasileira ainda hoje tem optado para as práticas alimentares tradicionais, embora a cada dia acontece um crescimento do uso de alimentos ultraprocessados (sal, açucar elevados). Em relação ao marketing nutricional a maior vítima é o público infantil que utiliza alimentos ultraprocessados e consequentemente adquiri doenças crônicas.
Boa tarde. Fiquei bem feliz em poder participar da oficina, pois é um espaço riquíssimo de compartilhamento e enriquecimento de saberes. Sou nutricionista e também trabalho com rotulagem nutricional. Primeiro quanto a legislação que rege a rotulagem, acho ela confusa, poderia ser mais clara, mais objetiva. Ao elaborar alguns rótulos tive dúvidas e entrei em contato via e-mail com a ANVISA e a Vigilância Sanitária do Estado porém a resposta foi uma cópia da legislação, ou seja, dúvida não sanada. Se quem faz apresenta dúvidas, imagina o consumidor, muitos realmente não sabem interpretar, a informação nutricional como hoje é colocada se é entendida, é somente por uma pequena parte da população, que possivelmente é quem trabalha na área de alimentação ou crítico. Para mim, alterar a forma de apresentação das informações nutricionais é sem dúvida um grande passo para auxiliar num melhor entendimento do que se está comendo.
Sem dúvidas deve-se buscar um esclarecimento nas informações contidas nos rótulos, uma boa saída seria a criação dos selos de procedência, de forma a contribuir para o esclarecimento das informações.
Boa noite,
Sou Nutricionista e concordo com a discussão abordada a respeito da busca por informações claras e de fácil entendimento nos rótulos dos alimentos. O consumidor deve dispor de autonomia e ciência para realizar suas escolhas alimentares; nesse aspecto os rótulos dos alimentos funcionam como uma ferramenta decisiva. A transmissão de informações a respeito da composição do alimento e todos os aspectos a ela relacionadas deve ser a prioridade para a rotulagem.
Gostei muito de sua abordagem de alimentação saudável e sustentável, quando fui aluna da Especialização em Inovação e Sustentabilidade , uma das disciplinas foi trabalhar um conceito semelhante a e docente responsável passou um vídeo de 100 minutos sobre o uso do agrotóxico, a turma tava entendiada, não usou diálogos e novas abordagens como as que estão sendo apresentadas aqui.
Boa noite!
Concordo que os rótulos devem ser mais atrativos. As mensagens “0 gorduras” “sem glúten” “sem adição de açúcares” e outras mais quase sempre remetem a ideia de um alimento saudável. Todavia, temos que levar em conta a lista de ingredientes, ter um olhar atento sobre os conservadores…
Sim Marcelle, colocar na tabela que o produto que tenha 0,2g de gorduras trans tem 0g na porção é mentira, isso remete ao consumidor a ideia de se estar comendo um alimento mais saudável. Mas quem diz que ele come somente a porção indicada? Na minha visão a tabela deve apresentar os números do que realmente o produto apresenta. Essa abertura na legislação confunde o consumidor quanto a qualidade do que se está ingerindo.
Bom dia !
Tenho dificuldade, pois em alguns rótulos dizem que é suco natural, mas suco natural é de 50% da polpa e concentrado não sei o percentual, e também não existe clareza.
Gostei do esclarecimento, temos tanta obsidade no país devido a produtos
com falta de identificação, e nós brasileiros embarcanos.
O governo através dos orgãos de proteção deveriam tornar os rótulos mais esclarecidos para que nós brasileiros possamos deixar de ter obsidade, doenças que virão no futuro, através desta medidas a saúde pública agradece, e o Estado terá um povo mais sádio.
Vera Regina Silveira
Vera Regina, suas colocações são plausíveis, tendo em vista que, os fatores de risco como obesidade, apontam para uma estimativa de 50% de crescimento do índice de doenças crônicas até 2030, segundo a OMS. Sabe-se que um dos principais fatores que aumentam os índices de obesidade, se dá pelo consumo de alimentos de péssima qualidade, que na grande maioria dos casos, nos rótulos dos produtos não apresentam os índices nutricionais de forma clara.
Pensando nisso, na 3º Conferência Estadual de Economia Solidária da Bahia, sendo realizada de 21 a 23 de maio/2014, bem como na Conferência estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, os delegados do Território Litoral Sul – BA, foram unanimes em propor o Marco Regulatório para o processo de Rotulagem dos produtos, bem como para utilização de personagens e imagens de desenhos animados, dentre outros, no processo de divulgação de produtos alimentícios destinados à alimentação infantil.
Buscando através desse Marco Regulatório a padronização da rotulagem dos alimentos, tornando-os de fácil leitura, de modo a contribuir para melhor escolha do produto desejado, uma das ementas é divulgação do fator de rastreabilidade do produto, devendo ter as seguintes informações: Origem, meio de produção (orgânico ou não, processamento, etc.). De modo a trazer maior segurança na escolha dos produtos.
Buscar-nos-ermos também inibir o tráfico de influência na divulgação de produtos de gêneros alimentícios destinados à alimentação infantil, com o impedimento dos fabricantes destes produtos de apresentar nas mais diversas formas de divulgação dos mesmos, a presença de imagens e personagens de desenhos animados, histórias infantis, bem como qualquer outra categoria.