Em entrevista ao Mobilizadores COEP, o jornalista Guilherme Canela, coordenador de relações acadêmicas da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), fala um pouco sobre os motivos que levam muitas das ações sociais praticadas no Brasil a serem vistas ainda hoje como caridade ou filantropia. Comenta também sobre a cobertura da mídia às ações sociais desenvolvidas no país e sobre o crescimento de pautas envolvendo crianças desde 1996, quando a Andi começou a monitorar diariamente a mídia.Mobilizadores COEP – Por que muitas das ações sociais praticadas no Brasil, sejam elas por parte do Estado, empresas ou terceiro setor, ainda hoje são vistas como caridade, filantropia? O que falta para que a sociedade enxergue estas ações como um reflexo do direito à cidadania?R. ? Eu assinalaria algumas questões, dentre inúmeras. Diversas pesquisas da Andi revelam que a população beneficiária de Políticas Públicas (sejam elas educacionais, de saúde, de assistência social etc.) é mais identificada pelos meios de comunicação como população carente do que como cidadãos, ou seja, como sujeitos com direitos. Este tipo de conduta, certamente também presente nos discursos de OnGs, governos e até mesmo especialistas (isto é, as fontes dos jornalistas), acaba por reforçar uma cultura de favor do Estado para com a população. Esse favor supre uma carência e não uma política (ou dever do Estado) que existe (ou deveria existir) em função de um direito prévio. Na mesma linha de raciocínio anterior, pesquisas também conduzidas pela Andi identificam que há uma enorme dificuldade em discutir as questões pertinentes à arena social, a partir de uma ótica de Políticas Públicas Sociais. Assim, ou se discutem as temáticas de maneira muito individualizada (por exemplo, a criança X que foi abusada sexualmente e não a política governamental de prevenção e combate ao abuso sexual) ou a partir de projetos pontuais. É o que chamo de ?projetização? da discussão social: fala-se de um sem-número de projetos específicos com alguma freqüência, porém debate-se muito pouco quais são as políticas públicas de longo prazo com vistas ao equacionamento dos problemas sociais brasileiros. Além disso, ao se afastar (ou até mesmo desconsiderar) a discussão referente aos marcos legais (nacionais e internacionais), que são o sustentáculo de uma noção mais contundente de direitos (e não de caridade), por um lado, e, por outro, não se levar em conta com a devida freqüência atores como o legislativo, o ministério público, as defensorias públicas, os conselhos e o judiciário, cujos mandatos são de garantia dos direitos, acabamos por ignorar uma reflexão política que considere definitivamente uma perspectiva de direitos e não assistencial. Mobilizadores COEP – No seu ponto de vista, como a mídia, em geral, cobre as ações sociais promovidas por empresas? De que forma esta abordagem perpetua a cultura do favor? O que você acha que deveria ser mudado? R. – A mídia segue, na cobertura das políticas desenvolvidas pelas empresas dentro de seus assim chamados programas de Responsabilidade Social Empresarial, um perfil muito semelhante ao identificado na questão anterior. Ou seja, fala-se muito de programas e projetos específicos, porém sem uma conexão mais contundente com o contexto amplo do problema social brasileiro, os direitos da população e, mesmo, a atuação do setor privado em geral e não somente nesses casos pontuais. Ao se identificar muitas obrigações (deveres) das empresas com uma espécie de bom-mocismo ou benevolência, acaba-se por perpetuar uma cultura do favor. Ou seja, quando a cobertura das ações empresariais é intrinsecamente positiva, desprovida de uma reflexão mais crítica, ignorando as questões macro, não separando o que são obrigações legais de ações que transcendem o mínimo legislativo, esta cobertura acaba por oferecer, com um contorno florido, um panorama de atuação pontual e caritativa das empresas. Há aqui dois problemas: de um lado, em muitos casos a ação realmente é pontual e quase assistencial, neste sentido a cobertura acrítica é perniciosa; de outro, esta mesma postura prejudica quando estamos falando de programas bem-estruturados e com visão de longo prazo. Os jornalistas precisam entender melhor o que está por trás do conceito de Responsabilidade Social Empresarial, que vai muito além do Investimento Social Privado (já relevante). Com isso devem estruturar uma cobertura mais contextualizada, mais crítica e menos voltada para uma espécie de divulgação de boas práticas e nada mais. Mobilizadores COEP – Você acha que as políticas públicas podem ser exercidas também por empresas e ONGs. Como e por quê?R. – Sim. Na minha visão, as políticas públicas são todas aquelas ações com um caráter amplo, visão de longo prazo, passíveis de avaliação e monitoramento, sem fins de lucro direto, que não excluam nenhum indivíduo que se encaixe na população à qual elas se destinam. Então, por exemplo, se uma empresa decide fazer uma política de revigoramento da comunidade que está no seu entorno, todos os membros desta comunidade devem ser beneficiados pela política e não somente os simpatizantes da empresa. Isto seria uma política pública levada a cabo por um ator privado. Mobilizadores COEP – Uma das críticas à atuação das empresas na área social é de que ela é pontual, beneficia grupos isolados, e não contribui para a universalização dos direitos. Você concorda com essa crítica? Por quê?R. – Há ações deste tipo. Entretanto, não é necessário que assim seja. O grande avanço na reflexão é como superar este cenário.Mobilizadores COEP – A Rede Andi, que completou treze anos em março de 2006, tem um trabalho reconhecido na disseminação de notícias sobre os direitos da infância e adolescência visando à promoção dos direitos de meninos e meninas em nosso país. Quais foram os principais resultados obtidos pela Rede nesse período? É perceptível uma mudança na cobertura feita pela mídia?R. – Muitos são os resultados objetivos, eu sinalizaria: mais de 300 jornalistas amigos da criança certificados em todo o país, envolvendo os mais diferentes veículos de comunicação; um salto de 1000% (de 10 mil para mais de 100 mil matérias) na cobertura sobre infância desde 1996, quando começamos o monitoramento diário da mídia; 11 agências parceiras da Rede no Brasil e 12 em países latino-americanos; melhora em diversos aspectos qualitativos da cobertura. Ou seja, definitivamente, a criança e o adolescente estão na pauta da mídia impressa brasileira e, com isso, passaram a ser parte constante das políticas públicas dos distintos níveis de governo. Muitos atores, inclusive a Andi, contribuíram para este cenário. Muito foi feito, porém ainda há muito por fazer. A diferença é que hoje há uma receptividade na mídia para com estes temas, que não havia há 13 anos, quando a Andi deu início às suas atividades.Mobilizadores COEP – Você acha que a experiência da Andi poderia ser repetida em favor dos direitos de outros grupos como mulheres, índios, negros? A seu ver o que seria preciso para isso? R. – A Andi desenvolveu uma tecnologia social de relacionamento com os meios de comunicação com o fim último de defender os direitos de uma população específica (crianças e adolescentes). Certamente, esta tecnologia social poderia ser reaplicada, considerando-se outras populações. Nós mesmos já fizemos um projeto piloto tendo como foco as pessoas com deficiência. Há uma Agência de defesa das pessoas com AIDS já em funcionamento e uma em defesa dos direitos dos índios que acabou de ser inaugurada. Para tanto, é preciso vontade política dos grupos interessados, financiamento e a busca pelo entendimento da tecnologia social em questão.