Acidentes e agressões, juntos, são a primeira causa de morte de meninos e meninas com até seis anos no país, de acordo com a Análise da Violência Contra a Criança e o Adolescente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Mas a pesquisa A Ponta do Iceberg, do Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo (Lacri), estima que apenas 10% dos casos de violência chegam a ser conhecidos. Um Projeto de Lei pretende aumentar esse número obrigando professores e médicos a denunciar.
O levantamento aponta que 49.481 ocorrências de agressões físicas foram denunciadas no Brasil na década 1996-2007 (2,9 mil somente no ano passado). Número que pode ser 10 vezes maior, seguindo a lógica de subnotificação apresentada no estudo.
Os dados do Lacri foram obtidos através de levantamento empreendido por organizações parceiras do Laboratório em diversos municípios, junto a Delegacias, Conselhos Tutelares e outros órgãos responsáveis. Já o Disque-Denúncia de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Disque 100), canal nacional da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) para notificação desses casos, recebeu de maio de 2003 a julho deste ano 38.316 denúncias, das quais 14.692 (38,3%) referem-se a violência física e psicológica.
Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância
A Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância será comemorada entre 12 e 18 de outubro. Recém-criada pela Lei 11.523 de 2007, assinada pelo presidente Lula em setembro, a nova legislação prevê a realização de atividades pelo setor público e entidades da sociedade civil para conscientizar a comunidade sobre as verdadeiras causas da violência e suas possíveis soluções. Também visa chamar a atenção para a importância da primeira infância (0 a 6 anos) para o pleno desenvolvimento do ser humano.
Os especialistas em proteção à infância consideram que o combate aos maus-tratos contra meninos e meninas nessa idade apresenta dois principais desafios: dar visibilidade aos casos de agressão – cuja maioria ainda não é denunciada -, e acabar com a cultura de permissividade ao uso da violência como forma de educar. Dois projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados vislumbram esses dois pontos.
Segundo estimativa da pesquisa A Ponta do Iceberg, do Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo (Lacri), apenas 10% dos casos de violência física e psicológica são denunciados (veja quadro ao lado). É consenso entre os especialistas que isto ocorre porque o ambiente familiar é o espaço onde as agressões ocorrem com maior freqüência, perpetrada por pais e outros familiares. “O fenômeno está ligado à privacidade da família e passa por aquela deformação cultural de que, se é o pai ou a mãe que está batendo, está educando”, explica Eleonora Ramos, coordenadora do Projeto Proteger, de Salvador.
Mais rigor nas notificações
Se a família não denuncia porque está envolvida, por outro lado os profissionais que lidam diretamente com crianças devem fazê-lo, quando notam algo errado. A obrigação está prevista no artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com multa de 3 a 20 salários de referência para quem descumpri-la. Mas nem sempre o ECA se faz valer. Na área de saúde, por exemplo, a notificação dos agravos contra crianças e adolescentes passou a ser obrigatória somente a partir de 2001, com a portaria 737/01 do Ministério da Saúde. No ano seguinte (2002) o órgão publicou o manual “Notificação de Maus Tratos contra Crianças e Adolescentes”, dirigido a profissionais do setor. O material está disponível na Biblioteca Virtual em Saúde: www.bireme.br/php/index.php
Para aumentar o rigor no cumprimento do papel de denunciar casos de violência contra crianças tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1106/07. A proposta de autoria do deputado Alexandre Silveira (PPS-MG) estipula o prazo de 48h para que profissionais de saúde e educação façam a notificação das suspeitas à polícia ou ao Ministério Público – por escrito e com sigilo garantido. Ao modificar o texto do ECA, o PL aumenta a multa para quem não denunciar ao patamar de 10 a 50 salários de referência. O texto no momento encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara.
Eleonora Ramos considera que a mudança pode ajudar a expor casos de maus-tratos que costumam ficar no anonimato. “Hoje fica muito a mercê do profissional. Há professores e médicos que tomam providências e outros que não fazem nada. Uma mãe leva o filho com o braço quebrado ao hospital dizendo que foi uma queda de bicicleta e o médico registra que foi queda, mesmo que os indícios de violência sejam evidentes. Por isso o prazo de 48h e o aumento da pena pecuniária é algo positivo”, avalia.
A psicóloga Gabriela Azevedo de Aguiar, que coordena o Núcleo de Articulação pela Primeira Infância, da ONG Promundo, concorda que a aprovação do PL pode aumentar o número de denúncias. Mas o incremento na quantidade de notificações não é suficiente para resolver o problema, se não houver a reeducação de quem pratica a violência. “Não basta a denúncia pela denúncia. Em muitos casos o agressor é preso e a criança vai para um abrigo, onde acaba ficando meses ou anos. Quando retorna a casa, não foi feito nenhum trabalho com a família e a situação volta a acontecer”, diz.
A reeducação de pais e responsáveis para o fim da violência está prevista no ECA (art. 101), mas não há um diagnóstico de quantas entidades fazem esse trabalho no Brasil, atendendo a demandas encaminhadas por Conselhos Tutelares e Varas da Infância. Uma entidade que se tornou referência nacional na área é o Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, cujas ações junto a vítimas e perpetradores da violência podem ser melhor conhecidas no site www.sedes.org.br.
Desde a promulgação do ECA, a discussão sobre a necessidade de garantir o apoio reeducativo a quem bate nos filhos só ganhou repercussão com a apresentação do Projeto de Lei 2654, em 2003, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS). Com o objetivo de erradicar todo tipo de castigo físico e humilhante contra crianças, a proposta prevê o fortalecimento da política nacional de atendimento às famílias. A reconhecida importância do tema fez com que o PL recebesse parecer favorável em todas as Comissões da Câmara. Contudo, a proposta está parada há mais de um ano e meio na Casa (desde março de 2006), sem previsão de entrar na pauta de votação do plenário.
Fonte: Agência de Notícias dos Direitos da Infância ? Andi (www.andi.org.br)