A indústria apresentou dados imprecisos e caiu em contradição no debate sobre a colocação de advertências sobre excesso de sal, açúcar e gorduras nos rótulos dos alimentos. Nas últimas semanas, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) mostrou três estimativas diferentes sobre o suposto impacto negativo da medida. Além disso, passou a admitir a eficácia das advertências, antes tidas como inúteis.
O tom subiu depois que a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou relatório favorável ao uso de alertas sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas, nos moldes do que faz o Chile desde 2016.
“O departamento econômico da Abia fez um estudo para estimar o impacto da implementação de um modelo de rotulagem nutricional com alertas, similar ao adotado no Chile”, foi a resposta que a assessoria de imprensa nos enviou. “Esse estudo, de caráter preliminar, demonstrou que a medida poderia resultar em uma perda de aproximadamente 200 mil empregos no Brasil. O cálculo foi desenvolvido com base nas estimativas enviadas por associados da entidade.”
Pedimos à Abia informações detalhadas sobre o número, apresentado inicialmente em reportagem do Correio Braziliense em 8 de junho. A associação não quis ir além da resposta enviada acima.
No Chile, também o viés econômico respondeu por boa parte dos argumentos mobilizados durante a discussão. Como é o único país até aqui que implementou esse padrão obrigatório de rotulagem, gastamos os últimos dias analisando as informações disponíveis para saber se os dados mostrados pela Abia têm procedência.
A estimativa apresentada publicamente contradiz a própria projeção da entidade em documento encaminhado à Anvisa. Protocolado em 15 de maio, indica a perda de 145 mil postos de trabalho. A queda do faturamento anual ficaria em 77 bilhões de reais, ou 12,5%, acompanhada por uma redução de 2,4 bilhões de reais nas exportações. A Abia não explicou ao órgão regulador como chegou a esses números.
Na semana passada, em artigo também publicado no Jornal de Brasília, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) disse que a estimativa da Abia era de perda de 185 mil postos de trabalho.
O Ministério do Trabalho do Chile disse que não tem estudos específicos sobre os efeitos da lei, implementada há dois anos. A ABChile, equivalente à Abia, tampouco apresenta dados.
Fomos buscar informações nos relatórios anuais das empresas. Esses documentos são direcionados a acionistas. E, portanto, têm de mostrar o que de fato ocorre. “Sou grato em afirmar que 2016 se tratou de um bom ano em matéria de crescimento do faturamento”, escreveu o presidente da Coca-Cola Embonor, uma das duas engarrafadoras da corporação no Chile. O volume de vendas avançou no ano de implementação da medida, puxado por bebidas sem gás, em especial sucos, e água.
Em 2016, 70% do portfólio já era de bebidas com pouca ou nenhuma caloria. Em 2017, 79% das vendas foram desses produtos. Sim, o uso de adoçantes cresceu bastante. E é por isso que organizações como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) defendem que a Anvisa adote uma advertência também para a presença de edulcorantes, substâncias desde sempre envoltas em controvérsia. Isso é assunto para outra hora.
Na Coca-Cola Andina, em 2014 56% do portfólio receberia selos de advertência, contra apenas 7% atualmente. Isso reforça a capacidade de reinvenção dessas empresas e, portanto, de manter os índices de faturamento e de emprego.
Tanto na Embonor como na Andina, o número de trabalhadores se manteve. Isso em um cenário de recessão e baixo crescimento.
O Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil registra 1,8 milhão de postos de trabalho na indústria de alimentos e bebidas. Ou seja, se os cálculos da Abia estiverem certos, trata-se de um corte de mais de 10% das vagas hoje existentes.
Tudo é muito recente, de modo que faltam estudos científicos para dimensionar alguns aspectos da mudança. Mas já se sabe que a maior parte da população alterou hábitos alimentares.
As empresas de alimentos saudáveis se beneficiaram. A Nita, que vende frutas embaladas e snacks mais saudáveis, registrava uma procura dez vezes maior às vésperas da implementação dos alertas. Isso significa empregos.
Outra tendência clara é a reformulação de produtos. Isso obriga à contratação de mais engenheiros de alimentos. “A partir de julho, entrada em vigência da lei, a Soprole pôde comprovar um reconhecimento na preferência dos consumidores pelos produtos sem selos, fator que resulta fundamental para explicar o significativo aumento do faturamento no segundo semestre”, registrou uma das principais fabricantes de iogurtes do Chile.
Uma das maiores empregadoras do setor de alimentos no Brasil é a Nestlé, que diz contar com 20 mil funcionários. Tentamos saber o que se deu com essa empresa no Chile, mas não há relatórios financeiros publicados pela filial.
Observamos então o comportamento da Carozzi, também com um portfólio bem diversificado de comida-tranqueira e líder em vários segmentos. O presidente da empresa começa o relatório de 2016 dizendo que a lei “desorienta” o consumidor e “demoniza” a indústria, mas reconhece que o faturamento avançou 7,4%. Em cereais, as vendas avançaram 25%. Em compotas de frutas, 12%. No ano passado, o número de trabalhadores aumentou.
A reportagem do Correio Braziliense traz a palavra da diretora-executiva da Associação Brasileira de Embalagem (Abre), Luciana Pellegrino, que afirmou que as mudanças demandariam tempo e levariam cinco anos.
No Chile, foram doze meses. Como? Criando empregos. “Em alguns casos, as empresas tiveram de aumentar os turnos na área de pré-prensa e inclusive trazer pessoal adicional aos finais de semana”, registra a Associação de Industriais Gráficos do Chile.
Durante a tramitação e às vésperas da implementação, o setor enfrentou uma maré difícil porque as empresas de alimentos estavam esgotando os estoques de embalagens antigas. Mas a retomada veio com tudo.
“A resposta que pudemos dar à forte demanda que se gerou depois deste impacto nos permitiu normalizar nosso nível de entrega e inclusive ampliar nossa cota de mercado na segunda metade do ano. A margem de lucro se recuperou de maneira importante”, registra em 2016 a Edelpa Envases del Pacífico, uma das maiores empresas de embalagens do país. No ano passado, igualou o melhor desempenho de sua história.
Funciona ou não funciona?
“O louco sistema chileno”, disse o vice-presidente da Abia, Antonio Candido Prataviera Calcagnotto, durante um evento recente na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Sou professor universitário. Não vejo nenhum aprendizado naquilo.”
Durante toda a discussão na Anvisa, até a aprovação do relatório, a indústria se manteve em uníssono na tarefa de desacreditar o sistema de advertências. Agora, perante a possibilidade de derrota, admite que funciona. E muito bem. O presidente da Abia diz que o consumo se reduziu em 20% no Chile, sem redução da obesidade.
Os alarmantes índices de obesidade da América Latina começaram a subir na década de 1970, justamente quando produtos ultraprocessados foram se tornando abundantes e cada vez mais baratos. Esses níveis chegaram ao ápice ao longo desse século.
A ciência e o conhecimento popular mostram que perder peso é mais difícil que ganhar. Ou seja, demora para virar estatística pública. Mas nós temos de nos perguntar quantas doenças são evitadas quando cinco toneladas de chocolate deixam de ser vendidas de um ano para o outro. Independente dos índices de obesidade.
Fonte: Carta Capital