Quando montou seu negócio de arranjos de flores em São Paulo para angariar recursos para os refugiados na Europa, a jornalista brasileira Kety Shapazian trazia na memória os rostos e histórias dos sobreviventes que acolhera na ilha de Lesbos, na Grécia. No ano passado, ela e a filha, Gabriela, de 16 anos, seguiram para a região para se unir aos voluntários independentes que foram ajudar refugiados e imigrantes que desembarcavam no litoral do Mediterrâneo.
Nos últimos meses de 2015, ela estava indignada com as notícias e imagens sobre a onda migratória na Europa quando foi provocada pela filha: “Por que, em vez de ficar chocada, não vai pra lá ajudá-los?”, perguntou Gabriela.
Arrecadaram dinheiro com amigos e parentes para bancar a estadia, ganharam as passagens da irmã da jornalista. Kety e Gabi, como é chamada a menina, se encontraram em Lesbos pouco antes do natal, onde pretendiam trabalhar duas semanas. Ficaram 45 dias.
“Logo na chegada encontrei 30 refugiados afegãos esperando pelo embarque ao continente. Comprei 14 sacos de dormir e um celular para monitorar a jornada de dois irmãos, um rapaz de 17 anos e sua irmã de 15, que, felizmente, conseguiram chegar à Suécia”, conta Kety. “Eles não estavam nem na metade da jornadas.”
Kety e Gabi fizeram parte de um grupo de centenas de voluntários de vários países do mundo que se uniram em vários pontos da Europa para dar a primeira acolhida aos refugiados vindos do Leste. Milhares de pessoas dedicaram tempo e esforços pessoais nessa tarefa na Grécia, em sintonia com os trabalhos da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Muitos ainda prosseguem na tarefa em terreno europeu ou nos seus países de origem.
Membros de organizações não-governamentais mais preparadas para a ajuda aos deslocados– Médicos Sem Fronteira, Proactiva, See Watch, Fishlight e outras – somavam-se a quem, sem experiência, se oferecia para cortar legumes, comprar mantimentos, abraçar os recém-chegados, distribuir roupas secas e alimentos. Naquele período crítico, cerca de 500 mil pessoas desembarcaram na ilha.
Em apenas um dia, lembra Kety, 17 barcos chegaram na costa de Lesbos. “Quando os médicos começaram a fazer massagem cardíaca em uma mulher resgatada de um naufrágio, parei e me controlei: estou na comissão de frente e tenho muita gente para cuidar neste momento; deixo parar chorar depois”, relata.
Os voluntários se dividiam em três pontos da ilha – Eftalou, Skala Sikamineas e o farol Korakas – à espera dos barcos. Muitos passageiros aportavam em condições precárias, famélicos e hipotérmicos, depois de dias em alto mar. Havia os afortunados, cujos botes eram escoltados pelos jetskies e lanchas do See Watch.
Muitos foram resgatados das águas frias com vida. Para outros, porém, a travessia foi o ponto final. Milhares de corpos foram sepultados em Lesbos desde meados de 2015, quando o fluxo vindo da Turquia se acentuou, até o bloqueio da fronteira da Grécia com a Macedônia, em março deste ano.
“Ficávamos na beira d´água acenando com nossos coletes amarelos. Seis voluntários avançavam no mar para segurar o barco e impedir que virasse. Pedíamos calma para as pessoas, que queriam saltar ao mesmo tempo, em desespero, e começávamos a tirar primeiro as crianças, com o cuidado de levá-las para um lugar de onde poderiam ser vistas pelos seus pais. Então, formávamos um corredor humano para que os adultos desembarcassem e, por fim, tirávamos seus pertences. Em terra, as famílias iam se juntando, enquanto colegas voluntários gritavam em árabe ‘chá, sopa’ e os acolhiam”, relata. “Eu gostava de dar o abraço, sempre com um sorriso, e de chamá-los para se aquecerem e se secarem.”
A jornalista brasileira lembra-se especialmente dos irmãos Hanan, de 9 anos, e Mohamed, de 4, que desembarcaram e se aquietaram, sem demonstrar nenhuma ansiedade mesmo sem nenhum rosto familiar por perto. Foram alimentados e receberam roupas no campo de Platanos, mantido por anarquistas gregos, até que os voluntários perceberam se tratar de menores desacompanhados. O funcionário do ACNUR encarregado desses casos foi alertado, enquanto outros voluntários localizaram na mochila da menina um pedaço de papel molhado com o nome de familiares e números de telefones. Dias depois, o ACNUR proporcionou o reencontro da família em Lesbos.
O sírio Hahmatuluah Akhaban chegou à ilha com a foto do filho Homeed, de 15 anos, nas mãos. Os voluntários recorreram aos registros de refugiados do campo Moria, passagem obrigatória para todos os desembarcados em Lesbos, e a seus contatos pela Europa. Mas não encontraram o nome do garoto. Segundo Kety, muitos refugiados chegavam a Lesbos sem os passaportes e declaravam ter a nacionalidade com menor restrição de ingresso na Europa naquele momento. Iraquianos diziam ser sírios ou afegãos. Sírios diziam ser paquistaneses ou ienemitas. Não raro, trocavam também os nomes, o que acabou dificultando o reencontro de famílias.
Um dia, o mar trouxe o corpo de uma menina de quatro anos. Enquanto era esperada a equipe de perícia, um médico voluntário aproximou-se e permaneceu um bom tempo sussurando preces do Alcorão. Depois, ele contou a Ketty que sua filha morrera quatro anos antes. Ao ver a menina morta em Lesbos, compreendera que precisava estar ali naquele momento para velar e rezar pela garotinha, conforme os seus ritos religiosos.
Fonte: Onu Brasil
Imagem: ACNUR / Kety Shapazian