17/06/2016 I O estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro e a divulgação do vídeo do crime em redes sociais colocou em evidência o debate público sobre cultura do estupro. O tema é controverso. Apesar de ser um fenômeno identificado por sociólogos, antropólogos e ativistas e reconhecido pelas mulheres para quem a ameaça aparece como um medo recorrente, a cultura que banaliza o estupro é negada com frequência. O termo foi usado pela primeira vez nos anos 1970 por ativistas da segunda onda do feminismo, para tentar explicar por que o estupro era um crime tão comum.
No Brasil, de acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos 50 mil pessoas são estupradas. Mas, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esse número pode chegar a 527 mil casos se for considerada a subnotificação. O estupro é um dos crimes mais subnotificados no mundo todo, porque as mulheres tendem a se sentir culpadas pela violência que sofreram.
A subnotificação dos crimes e as dificuldades de investigá-los são agravadas quando família e autoridades duvidam do relato da vítima. As delegacias especializadas em crimes contra a mulher, que geralmente estão melhor preparadas para receber e investigar esse tipo de denúncia, estão sucateadas e são poucas. Menos de 10% dos municípios do país têm delegacias da mulher. Há também a pressão de grupos políticos e religiosos para limitar os direitos das mulheres em caso de estupros.
A cultura do estupro só é possível em um contexto em que haja profunda desigualdade de gênero. Para que ela exista, é preciso que haja uma constante desumanização da mulher e objetificação de seu corpo.
A seguir apresentamos dois artigos que abordam direta ou indiretamente a cultura do estupro. No primeiro, a jornalista Dorrit Harazim mostra que muitas mulheres, em vários locais do mundo, têm uma atitude misógena e contribuem para consolidar a cultura machista. Já a professora Silvana de Souza Nascimento fala especificamente sobre a cultura do estupro.
Para ajudar a pensar o tema, também apresentamos abaixo os links para outros artigos e entrevistas:
Faroeste digital
Era inevitável. Antes mesmo da investigação sobre o estupro da adolescente de 16 anos em uma favela da Zona Oeste do Rio tomar qualquer rumo, o caso adquiriu uma segunda vida. Virou letra de funk, com sua variante de letras chulas de abatedouro machista e degradação da vítima. Também surgiram garotas da comunidade portando cartazes de apoio aos acusados, em manifestação seis dias após o estupro.
Na enxurrada de comentários postados nas redes sociais, nem todas foram de empatia, dor e solidariedade com a jovem. Nem era de se esperar que o fossem. O que chama atenção, porém, é o volume de vozes femininas — ou pelo menos que se identificam como mulheres nos posts — a hostilizar e xingar cruamente a adolescente.
Pelo jeito, revela um estudo divulgado dias atrás na Inglaterra, trata-se de uma tendência global.
O Demos é um conceituado instituto apartidário de análises, pesquisa e formulação de políticas públicas. Fundado em Londres há mais de duas décadas por um marxista, isso não o impede de ter conselheiros até mesmo do governo David Cameron.
Seu Centro de Análises de Mídia Social (Casm) é especializado em pesquisas avançadas sobre o universo digital. A mais recente coletou e analisou 1,5 milhão de tuítes contendo as palavras “cachorra”, “puta” e “estupro” postadas ao longo de três semanas (23 de abril a 15 de maio).
Em seguida, usando algoritmos como filtros, foram separadas as postagens intencionalmente agressivas das que usavam os termos em vários outros contextos. Resultado da pesquisa: metade dos disseminadores da linguagem misógina mais abusiva no Twitter era mulher e garota. À deriva do seu meio social? Não, diz a pesquisa, inseridas.
O resultado confirma levantamento anterior feito dois anos atrás nos mesmos moldes, quando metade dos tuiteiros que disparavam os xingamentos gratuitos mais execráveis contra mulheres era, também, mulher.
Em nota que acompanha a divulgação da pesquisa, Alex Krasodomski-Jones, um de seus autores, encontra alento no reconhecimento político e preocupação pública (pelo menos na Inglaterra) quanto ao faroeste digital que atinge sobretudo as mulheres.
“Já se tornou evidente que, enquanto o mundo digital criou novas oportunidades para o debate público e a interação social, ele também construiu novos campos de batalha para os piores aspectos do comportamento humanos. Captamos apenas um instantâneo superficial do que pode ser uma experiência muito pessoal e traumática para mulheres”, diz ele. Sobretudo quando o tiroteio vem de todos os lados.
O estudo focou no Twitter porque a empresa se dispôs a colocar seus dados à disposição dos pesquisadores, mas sendo a misoginia prevalente em toda a mídia social, seria importante que os gigantes da indústria também se envolvessem na discussão, acredita Krasodomosky-Jones. “Não se trata de policiar a internet, e sim de lembrar que em geral somos piores cidadãos on-line do que offline”, argumenta ele.
Dawn Foster é uma jornalista inglesa voltada para temas sociais. Em recente artigo para o diário “The Guardian”, ela conta que, depois de publicar um artigo sobre abuso sofrido ao trafegar pela cidade de bicicleta, o primeiro comentário on-line que recebeu dizia “Se eu vê-la na rua algum dia, espero que leve um tiro”.
Ao longo dos dois anos seguintes, ela ocupou um cargo no jornal que considera ter sido o pior emprego de sua vida — foi moderadora on-line do jornal. Os comentários não publicáveis eram tão tóxicos, racistas, homofóbicos e sexistas que lhe tiravam o sono — isso, num jornal liberal como o “Guardian”. E quando os autores disponíveis para um chat eram mulheres, a intensidade dos insultos recebidos quintuplicavam.
Não espanta, assim, o corolário de impropérios e ofensas que não cessam de brotar nas redes à menção da jovem estuprada no Morro da Barão.
O importante, para a saúde e confiabilidade da mídia neste caso, é que nas próximas semanas, meses, anos — ou o tempo que for necessário — não haja trégua na apuração miúda de um caso que tanto comoveu o país. Nenhum canto deve permanecer obscuro. A dubiedade serve apenas à manutenção da treva.
Para a consagrada escritora feminista Jessica Valenti, autora do recém-lançado “Sex Object, a Memoir”, que trata do dilema político universal das mulheres, “somos pessoas doentes sem termos qualquer doença”. Nem a inabilidade para ser vulnerável nem a recusa a ser vítima protegem a mulher, apenas encobrem o que está torto.
Fonte: O Globo
Cultura do estupro é o apogeu da (falida) dominação masculina
Desde a figura bíblica de Eva, que mordeu a maçã, ofereceu-a ao marido Adão e passou a ter vergonha da sua própria nudez, a imagem das mulheres, em contextos de colonização cristã, esteve associada ao pecado e à quebra das regras determinadas por “Deus”, que lhe prescreveu uma pena: “sofrerás muito por causa de teus filhos e ficarás debaixo da autoridade do marido”.
Por trás dessa origem mítica, encontram-se alguns elementos-chave para tentarmos compreender a cultura do estupro: a associação (infeliz e misógina) das mulheres à perversão e ao vício, de um lado, e à sujeição aos homens, de outro.
Por serem “naturalmente” pecadoras – representação que muitas vezes se traduz em palavras como “vadias” ou “vagabundas” – são vistas como aquelas que provocam luxúrias e, por isso, podem incitar nos homens atos “descontrolados” já que, estes, por “natureza”, são mais fracos às “tentações da carne”.
Por esta ótica cega, o corpo das mulheres potencializaria a virilidade masculina que, na cultura do estupro, se concretiza, num ato brutal. Brutalidade que acarreta inúmeros traumas para as vítimas, físicos e emocionais. Provoca um sofrimento indizível e intraduzível.
Este sofrimento – “não dói meu útero, dói minha alma” – ficou escancarado nas redes sociais e nas mais diferentes mídias pelos últimos episódios de estupros coletivos, ocorridos no Rio de Janeiro e no Piauí. Trouxe à tona uma profusão de reportagens, textos e vídeos sobre a chamada cultura do estupro.
Na quarta-feira (1º de junho), na capital carioca e em São Paulo, milhares de mulheres, grande parte jovens, foram às ruas protestar pelo fim da cultura do estupro e mostrar que a violência contra as mulheres – sendo uma das mais graves a violência sexual – atinge todas as mulheres, de todas as classes, raças, etnias, identidades de gênero, orientações sexuais, regiões, profissões e escolaridades.
Por todas as mulheres, ruas de grandes capitais foram ocupadas por corpos e vozes femininas, com os peitos à mostra, rostos pintados, crianças de colo, e cartazes com os mais variados dizeres, “meu corpo, minhas regras”, “ser mulher sem temer”, “a culpa nunca é da vítima”, “nenhuma mulher merece ser estuprada”.
O que está por trás de cada palavra de ordem não é simplesmente a denúncia de um crime hediondo, é um chamado pela liberdade, pelo direito das mulheres ao próprio corpo e à sua própria vida.
Uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos. O país está entre os dez primeiros países no ranking mundial de feminicídio. Segundo dados do Mapa da Violência 2015 (dados da FLACSO), foram registrados 5.762 mortes de mulheres, o que significa 13 homicídios por dia.
Entre um café e outro que tomamos nos intervalos das aulas na universidade, uma mulher é brutalmente violentada, tendo seu corpo invadido pela ação predatória de um ou vários homens.
Este é um problema social e político que atinge a sociedade e as universidades não estão fora disso. No Brasil, uma em cada três jovens sofreram violência em relacionamentos afetivos (dados do Instituto Avon/Data Popular/2014). Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que 30% das alunas tenham sido vítimas de algum tipo de abuso sexual durante a graduação.
Na Universidade de São Paulo, nos últimos anos, houve diferentes casos de estupro, desde casos planejados de dopar a vítima e violá-la por grupo de rapazes até violências sexuais no âmbito de pessoas próximas a vítima (um namorado, marido, colega, etc.).
Grande parte dos casos foram registrados como denúncias (no âmbito da universidade e na Justiça). Contudo, é necessário um grande esforço por parte de todas as instâncias universitárias para, em primeiro lugar, acolher as vítimas e encaminhá-las aos órgãos competentes com todo o cuidado e respeito.
Não basta localizar o agressor e encaminhá-lo para a delegacia, por exemplo. É preciso garantir às estudantes que elas possam viver em segurança e tranquilidade nas salas de aula, nas bibliotecas, na residência estudantil, nos restaurantes universitários, nas ruas dos campi.
Muitas vezes, as vítimas, por medo, por falta de apoio institucional e pela presença constante dos agressores nos espaços da universidade (porque infelizmente os caminhos da justiça são injustos), abandonam seus cursos e sofrem processos depressivos que necessitam de atenção médica e psicossocial.
A culpa nunca é das mulheres e sim dos estupradores. Estes seres são legitimados por diferentes instâncias – da educação à segurança pública – que negam um processo histórico de desigualdade de gênero que atribui às mulheres a posição de objeto passivo, de não poder ter direito ao seu próprio corpo (que é um direito humano fundamental).
O corpo é o primeiro instrumento de cidadania de qualquer pessoa, é um direito inviolável, e, com seu próprio corpo e suas próprias regras, mulheres de todo mundo resistem.
À medida que os movimentos feministas se fortalecem, enfraquecem-se, pouco a pouco, os poderes da masculinidade hegemônica. Colocar em dúvida a primazia do “macho alfa” e, por exemplo, dizer simplesmente “NÃO” a suas propostas indecorosas, representa uma afronta à sua honra ferida, sentimento que pode desencadear reações muito agressivas, amparadas por coletividades masculinas.
Estes últimos episódios que tiveram destaque na mídia mostram estupros coletivos que desumanizaram as vítimas, tornando-as apenas um corpo maldito, violado, mutilado que não pertence mais à mulher.
Felizmente, muitas mulheres abandonaram há muito tempo o Paraíso e embrenharam-se na vida real que não se resume a serpentes, deuses, maçãs e maridos. Mesmo que, no contexto político atual, tenha ocorrido uma reação contrária às conquistas das mulheres desde os anos 1960, cresce o número de mulheres chefes de família, aumenta o número de mulheres em postos de direção e em candidaturas a eleições para cargos políticos.
As novas gerações, com suas ousadias revolucionárias, não se sujeitam a ter suas vozes caladas nem a ter seus corpos alvo de ações machistas. Por isso, a cada vez que uma mulher é violentada, todas o são. O retrocesso violento produz uma resistência em rede que não se cala. A luta feminista é por todas nós, com nossos corpos e nossas regras.
Fonte: Jornal da USP
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